quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A proliferação da burrice


Estaria a burrice crescendo? Será que não estaríamos testemunhando uma proliferação alarmante da irracionalidade e a exuberância da ignorância?

Já faz um bom tempo que eu penso sobre esse assunto e agora vejo que o aumento alarmante do número de pessoas burras tem preocupado um grupo crescente de estudiosos. Recentemente, foram publicados dois artigos (aqui e aqui, em inglês) ambos inspirados num ensaio feito a 35 anos pelo historiador econômico italiano Carlo Cipolla e intitulado “ As Leis Básicas da Estupidez Humana ”. Neste tratado cheio de humor e um tanto quanto provocativo, Cipolla adverte contra o poder da estupidez (burrice). Dele, três leis eu exponho abaixo. A primeira fornece uma definição para a burrice, e as duas últimas destacam a abundância e a eficácia da estupidez:
“Uma pessoa burra é uma pessoa cujos atos causam perdas à outra pessoa ou a um grupo de pessoas, enquanto ela própria, ou não obtêm nenhum ganho ou até também perde por causa deles.”
“Sempre e inevitavelmente todos subestimam o número de indivíduos acéfalos em circulação.” 
“As pessoas não estúpidas sempre subestimam a capacidade que têm os indivíduos burros em causar dano. Em particular, as pessoas não estúpidas sempre esquecem que em qualquer momento ou lugar e em qualquer circunstância, lidar e/ou associar-se a pessoas burras sempre acaba por ser um erro grave e caro.”


Cipolla descreve pessoas burras como um grupo, não estruturado, porém poderoso. Ele argumenta que quando você sofre devido às ações dos outros, talvez não seja devido às ações malévolas, mas simplesmente por causa das ações impensadas:

“Nossa vida cotidiana é, em grande parte, repleta de situações em que perdemos dinheiro, tempo, energia, apetite, alegria e saúde por causa da ação insensata e estúpida de uma criatura que, no entanto, não tem nada a ganhar com aquilo e que de fato nada ganha. Ninguém parece realmente saber, entender ou explicar o que faz aquela criatura absurda fazer o que faz. De fato não há explicação – ou melhor, há apenas uma explicação: A pessoa em questão é burra”.

Desde que o ensaio de Cipolla apareceu em 1976, vários autores têm constatado suas descobertas. Em particular o artigo “A navalha de Hanlon”  , publicado por Robert Hanlon, quatro anos após o ensaio de Cipolla, nos propõe “Nunca atribuir à malícia aquilo que pode ser adequadamente explicado pela burrice”. A navalha de Hanlon pode ser interpretada como um corolário das leis básicas da estupidez listados acima.

Um Enigma para Darwin

Embora os pensamentos acima sobre os efeitos da estupidez possam parecer atraentes, eles nos apontam um enigma ignorado por Cipolla e seus seguidores: como é que a burrice prolifera? Não deveria a estupidez ter sido eliminada há muito tempo pelo processo de seleção natural?
À primeira vista, a burrice seria uma característica que esperamos ver ser penalizada e conseqüentemente extinta ao longo do processo de seleção natural. Afinal, as pessoas burras por definição tendem a não obter nenhum ganho através de seus atos inconseqüentes e… burros. Coloque uma pessoa burra ao lado de pessoas “normais”, em um ambiente competitivo. A pessoa estúpida, provavelmente, sairá como a perdedora, e certamente não como a mais apta. Como poderia então a estupidez sobreviver e até mesmo florescer?
Eu vou tentar dar uma resposta satisfatória para esta pergunta ainda que não tenha a mínima pretensão de chegar a uma resposta definitiva, mas o sistema que proponho, mesmo que não possa explicar exaustivamente o mecanismo que leva à sobrevivência da burrice, irá pelo menos fornecer algumas pistas para isso. Como muitas vezes acontece, o caminho em direção à resposta será, no mínimo, um exercício filosófico interessante. Ele irá nos conduzir desde a estratégia básica do pôquer aos limites de aplicabilidade da teoria dos jogos.

Uma característica fundamental da estupidez é que seu poder reside na sua abundância. Uma pessoa burra isolada é impotente, mas uma manada desses jumentos pode ser invencível. Coloque uma pessoa inteligente em um grupo de pessoas burras e você vai presenciá-la sucumbir diante da burrice. Em um ambiente infestado de burros “ser o mais inteligente” não equivale a “ser mais apto”.
Para obter um controle sobre o mecanismo por trás da eficácia da abundancia da burrice, voltemos a 1997. Naquele ano, Andy Morton, um biólogo molecular especializado no jogo de pôquer postou na internet um artigo com estratégias desse jogo as quais resumo como:
“Cuidado com o poder da burrice” 

Um slogan que resume igualmente bem as conclusões de Cipolla. Em sua estratégia de jogo, Morton efetivamente demonstra que também em jogos de soma zero, como é o caso do pôquer, o efeito nocivo de uma estupidez pode se estender bem além dos limites do próprio burro. Morton explica como, num cenário realista de pôquer, onde se espera que todos jogadores façam jogadas inteligentes, uma jogada estúpida de um deles vai te prejudicar. O que acontece neste cenário é que o movimento impensado de um de seus oponentes prejudica as expectativas de ganho dele mesmo, mas também as suas, ao passo em que causa um efeito oposto (efeito positivo) nas expectativas dos outros jogadores. Note que este “efeito de Morton” (uma jogada estúpida de seu oponente machucando você) não pode ocorrer em jogos de soma zero com apenas dois participantes. Ou seja, para o efeito Morton poder ocorrer em um jogo de soma zero, é necessário que você esteja enfrentando vários adversários.

O duplo Morton

Agora vamos dar o segundo e último passo em nossa tentativa de explicar a abundância da burrice no mundo: o chamado duplo Morton. O mecanismo por trás do duplo Morton é de fácil compreensão, com base no efeito Morton em jogos com vários jogadores.
Suponha que você está jogando contra Maria e Pedro num jogo de apenas três jogadores. Nesse jogo, Maria poderá fazer um movimento idiota que venha a prejudicar a ela e a você, ao mesmo tempo em que favorece a Pedro. Do mesmo jeito, Pedro pode efetuar um movimento estúpido prejudicando a você e a ele, mas favorecendo Maria.
O que aconteceria se Maria e Pedro fizerem, ambos, movimentos estúpidos? O resultado será uma perda pra você e um ganho pra eles. Pois você será prejudicado duas vezes (uma por Maria outra por Pedro) enquanto Maria uma (por Pedro) e Pedro uma (por Maria). Este efeito duplo Morton é o que faz a burrice ser desproporcionalmente eficaz em grupos infestados, contaminados, pela estupidez. Ele favorece a burrice devido a um ciclo de feedback positivo em que o resultando é a criação de mais estupidez. Esse exemplo de efeito Morton não é exclusivo do pôquer, tanto ele como o duplo Morton são comuns em muitos jogos de múltiplos jogadores.

O Dilema do Tênis
A reserva de duas cobiçadíssimas quadras de tênis em um clube da moda é proposta de forma independente e simultânea a você e a seus dois parceiros de tênis dos fins de semana. Cada um de vocês tem que decidir na hora para qual das duas quadras se inscrever, sob pena de perderem a vaga se não forem rápidos, sem ter mesmo tempo para consultar os demais por telefone, e sem ter o direito a qualquer possibilidade de modificação posterior. As opções são: a quadra A, por 45 minutos, ou a quadra B, por 60 minutos. Se todos os três optarem pela mesma quadra, todos os três vão ter a oportunidade de jogar durante dois terços do tempo total disponível. Se um de vocês escolhe uma quadra diferente da dos outros dois, ficará sozinho e não poderá jogar tênis, enquanto que os outros dois poderão jogar, cada um, durante o tempo inteiro.
Qual a quadra de tênis que você escolheria, a A ou a B?
Claro que escolheria a quadra B. Pois, sendo a quadra B exatamente igual à A, custando o mesmo preço e ainda por cima disponível por um período mais longo, 60 minutos, apenas pessoas burras iriam escolher a opção ‘A’. Assumindo que os seus dois amigos também farão uma escolha racional, cada um de vocês vai desfrutar de 40 minutos de tênis.
Não há problema, você poderia dizer. A escolha é óbvia! Você sabe que ‘B’ é a melhor opção, e saberá que os outros dois vão atinar pra o mesmo fato, pois todos querem jogar tênis durante o maior tempo possível, pagando o mesmo preço. Você nunca iria selecionar a quadra ‘A’, já que essa escolha iria te proporcionar menos tempo de jogo, pelo mesmo preço.
Se você pensa assim, você corre o risco de ser vítima do Efeito Cipolla por subestimar o poder que têm as pessoas burras de causar dano às pessoas normais. Vamos ver porque este é o caso.
Como vimos, você estará certo em sua escolha lógica pela opção ‘B’, desde que pelo menos um dos outros dois se comporte também de forma lógica (inteligente).
Mas o que aconteceria se os dois outros se comportarem estupidamente escolhendo a quadra A? Isso mudaria as coisas de forma dramática. Você acaba sozinho na ‘B’ e não pode jogar, enquanto os outros dois vão, cada um, desfrutar de 45 minutos de tênis.
O quão estúpido é isso?
Imagine a discussão que se seguiria quando vocês três se encontrassem ao término do horário. ”Vocês deveriam ter escolhido a quadra B”, você vai gritar pra seus amigos.
“Por quê?”, perguntariam os asnos.
“Porque escolher ‘A’ é uma decisão realmente estúpida!”, você grita. “Escolhendo ‘B’, teríamos muito mais tempo de jogo”.
“Quanto tempo nós teríamos recebido se tivéssemos selecionado a opção ‘B’?”, perguntam eles.
“Teríamos jogado cada um 40 minutos”, responde você.
“Há é? Nós jogamos 45 minutos”, replicam os quadrúpedes. Eu acho que você é que é quem não pensa por aqui!”. Eles saem rindo em direção ao bar e te deixam falando sozinho com cara de besta.
Estúpidos 2 = Inteligente
O dilema de tênis acima torna claro como duas escolhas estúpidas, não estando nenhuma delas voltada a potencializar os ganhos, pode gerar um resultado imbatível. Dois ‘estúpidos’ podem bater um “inteligente”. Isso é, na verdade, um atentado à “inteligência”, uma vez que reduz efetivamente o benefício total para o grupo (neste caso, reduzindo o total de jogadores em tempo 120-90 minutos).
Note que, de acordo com a definição de Cipolla, um jogador que selecionou ‘A’ é individualmente culpado. Se esse jogador tivesse mudado a sua escolha de ‘A’ para ‘B’, ele teria aumentado seu tempo na quadra de tênis de 45 a 60 minutos e o tempo total dos dois outros também 45-60 minutos. Assim, por não ter selecionado ‘B’, a escolha deste jogador reduziu não só o seu próprio tempo na quadra de tênis por 15 minutos, mas também o tempo dos outros na mesma proporção. No entanto, os dois jogadores que selecionaram ‘A’ não são coletivamente estúpidos de todo. Tendo você optado por ‘B’, a escolha racional, a única maneira deles aumentarem o tempo deles de jogo seria os dois optando por ‘A’. Em ‘B’ todos ganham, em ‘A’ dois ganham e um perde tudo.
Vemos aqui o ‘duplo Morton’ em pleno andamento: uma massa crítica de resultados estúpidos com um potencial destrutivo imbatível. Isso não ocorre apenas na mesa de pôquer, mas igualmente na vida real. O duplo Morton coloca limites para a aplicabilidade da teoria dos jogos, já que esta teoria é baseada na premissa do comportamento racional. Em grupos em que as falsas crenças, como “A escolha ‘A’ é melhor se torna a regra”, a teoria dos jogos tem efeito limitado. Isso não significa que uma pessoa racional será uma vítima indefesa da irracionalidade em torno dela. Para que ela sobreviva, terá que proceder “inteligentemente” deduzindo que, se pelo menos 64% da população tende a aderir à essa falsa crença “A é melhor”, o comportamento ideal para ela será acompanhar a maioria e também escolher ‘A’. Por isso, numa população dominada pela burrice, pessoas racionais são forçadas a se comportar burramente.
O cenário a seguir é, portanto, perfeitamente possível: três indivíduos racionais participam no dilema das quadras de tênis sem saber da escolha de qualquer um dos outros jogadores. Todos os três, no entanto, estão conscientes de que, na população onde vivem, a escolha ‘A’ é feita mais de 64% do tempo. Todos os três, portanto, fazem a escolha racional da opção ‘A’. Quando confrontados a tal dilema, os três devem raciocinar da seguinte forma: “Bem, é melhor antecipar o comportamento irracional dos outros dois e escolher ‘A’!”. O interessante é verificar que, em se agindo assim, a irracionalidade nesta população passou a ser uma coisa do passado: todos os indivíduos agora agem racionalmente, respondendo matematicamente às estatísticas. Logo, comportamento estúpido não é sinônimo de comportamento irracional.
Espero que eu tenha deixado mais ou menos claro o processo de como o duplo Morton fornece uma explicação para a proliferação da burrice. Levando-se em consideração que duplos Mortons ocorrem no jogo diário da sobrevivência ao qual costumamos nos referir como o “jogo da vida”, a estupidez abundante tenderá a ser ainda mais abundante.
Vítima da estupidez
Todos nós somos repetidamente vítimas do efeito Morton. As pessoas agem estupidamente prejudicando não só a si mesmas, mas a você também. O fato de que isso pode acontecer em jogos de soma não-zero é bastante trivial. Morton deixou claro que este cenário se estende a vários jogadores de jogos de soma-zero.
Mesmo uma pessoa que conheça bem o poder da burrice continua vulnerável quando na presença desta.
Quando ele revelou sua teoria em 1997, Andy Morton tinha 33 anos. Ele morreu tragicamente um ano depois. Quer saber qual foi a causa de sua morte prematura? Andy foi vítima do efeito Morton e pagou com a sua vida pelo fato de alguém ter agido estupidamente. Andy estava conduzindo sua motocicleta quando uma mulher dirigindo uma caminhonete da qual ele se aproximava, mudou brusca e desnecessariamente de direção, no meio do tráfego, atingindo-o na cabeça. Ele teve morte instantânea.
Fonte: http://livrespensadores.org/artigos/humor/a-proliferacao-da-burrice/?utm_source=twitterfeed&utm_medium=facebook

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