quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Deus e suas manias de desejar que despedacem os filhos :-)


quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Deus, ninguém me ama também :-(

Eu lembro que, logo no início do filme A Bela e a Fera, o narrador fecha a introdução dada à estória com essa pergunta: “Pois quem seria capaz de amar um monstro?”. Um ótimo começo, porque resume bem o excelente enredo e a moral dessa fábula, uma vez que o bom-senso nos leva a pensar que um amor entre uma mocinha linda e uma criatura horripilante seja mesmo impossível. A expectativa, então, é a de que o conto de fadas venha a nos mostrar que estamos errados, e nos surpreenda com um final maravilhosamente inesperado.

Mas o mundo real não é assim tão surpreendente. Não fui eu que fiz essa lei, mas quando uma coisa tem chance de dar errado, ela vai dar errado. Se você quer namorar uma princesa, ajuda mais ser o príncipe do que ser o sapo. E se você é um Deus carente que precisa muito de amor… então é melhor fazer por onde. 
Veja os cristãos, por exemplo: depois de se darem conta de quão monstruoso era o Deus hebraico, resolveram acorrentá-lo às páginas do Antigo Testamento, e lá o esqueceram. Já tendo feito o que lhe cabia — criar o mundo e lançar sobre ele sua maldição — Deus agora é convenientemente usado apenas como ameaça: um pitbull raivoso que eles prometem soltar nas fuças de quem não simpatizar com o deus do Novo Testamento — Jesus Cristo —, em tudo e por tudo diferente do Deus-monstro que eles se viram incapazes de amar.
Pelo dogma da Santíssima Trindade (em que entra, também, o Espírito Santo, que nem fede nem cheira), admite-se que Deus e Jesus sejam uma e a mesma “pessoa”. Mas isso é só mais outra das incontáveis e embaraçosas contradições da doutrina católica, porque as diferenças não poderiam ser maiores.
Deus era o deus dos hebreus, o deus do “povo escolhido” (escolhido por ele, Deus); Jesus é o deus de qualquer um que se disponha a trocar demonstrações carnavalescas de amor fingido por um salvo-conduto que o livre do castigo de ser torturado por toda a eternidade (ameaça feita por ele, Jesus).
Deus cuidava exclusivamente dos hebreus e estava sempre do lado deles nas trincheiras; Jesus não tem nada de belicoso e, aparentemente, não faz distinção étnica.
Deus afogou quase todo mundo na Terra, incitava guerras, matava e mandava matar; Jesus não é afeito a genocídios e sempre foi infinitamente mais diplomático.
Deus criou o universo todo, junto com tudo que há nele; Jesus se contentou em fazer apenas alguns truques de circo.
Mas se o Pai era o Verbo, o Filho do Homem foi o Discurso. E graças a uma conversa mole sobre recompensa em outra vida; graças à ameaça de entregar os dissidentes aos cuidados do Deus do Antigo Testamento, dois mil anos depois, Jesus é o único deus dos cristãos. Eles veneram sua imagem; eles fazem músicas em seu louvor; eles divulgam suas ideias e pregam em seu nome; eles o bajulam; eles recontam suas aventuras para as crianças; eles comemoram o dia do seu aniversário.
De hoje em diante, quando baterem à sua porta nas manhãs de domingo, nos sermões das igrejas, nos shows de horrores dos programas religiosos na tevê; e sempre que vierem falar de “Deus” para você, tente perceber a que deus eles estarão se referindo, a que deus eles estarão dirigindo suas lamúrias, a que deus eles invocam para agradecer e para suplicar, a que deus eles dizem que amam. Eu sou capaz de apostar que será o deus do Novo Testamento.
O outro, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, permanecerá acorrentado e esquecido na solidão daqueles milênios longínquos, até o fim dos tempos.

Pois quem seria capaz de amar um monstro?

Fonte: http://deusilusao.com/

8 Bizarrices da bíblia!

São diversas as bizarrices da bíblia, abaixo temos 8 delas, mas sabemos que muitas outras existem ...
1 – Não ria dos carecas
Uma das passagens mais inspiradoras (ou assustadoras) da Bíblia está no livro de 2Reis (2:23-24). Ela conta a história de Eliseu, um homem bastante sábio, mas que sofria com a calvície, própria de sua idade. Um belo dia, ele estava em uma longa caminhada até Betel, na Cananeia, quando foi atacado por um grupo de crianças que queria provocá-lo por conta de sua careca.

Mas Eliseu soube se vingar e lançou maldições em nome do Senhor para aqueles meninos. Imediatamente, duas ursas surgiram do bosque e aniquilaram as 42 crianças, destruindo seus corpos até a morte. Moral da história? Nunca dê risada de um careca. Deus leva isso muito a sério.


2 – Violência e morte sem a condenação divina
Algumas histórias na Bíblia são bastante perturbadoras, mas é difícil encontrarmos algo tão horripilante quanto o que é descrito em Juízes 19:22-30. A história não é só bizarra, mas também totalmente repugnante.

Um homem e sua amante estavam vagando pelas ruas até que um indivíduo aceita hospedar os dois em sua casa. No meio da noite, um grupo de homens apareceu em sua porta, exigindo que ele entregasse seu hóspede para que eles tivessem relações sexuais com o viajante. O dono da casa então ofereceu sua filha virgem no lugar do homem.

Se tudo isso já não fosse ruim o suficiente, os homens ainda deixaram que ela sangrasse até a morte. Quando ela foi encontrada por seu noivo, ele deu fim a seus restos mortais distribuindo-os para as 12 tribos de Israel – tudo isso sem a condenação divina. Aparentemente, o homem ainda foi julgado justo, por impedir que seu hóspede fosse violado.

3 – Uma estranha prova de amor
Davi era um homem muito apaixonado pela filha de Saul e disse que ofereceria qualquer coisa pela mão da donzela. Saul, então, lança um desafio horripilante ao futuro genro: recolher o prepúcio de nada menos do que 100 homens, em uma só noite.

Davi, para provar que era realmente apaixonado, leva para Saul cerca de 200 prepúcios. Os pombinhos se casam e todos vivem felizes para sempre. Bem, menos os 200 homens mutilados por Davi. A passagem está relatada em 1 Samuel, 18-25.

4 – Um corte nada agradável
Outra passagem bizarra está em Êxodo 4:24-26, quando Deus tenta matar Moisés, pois seu filho não era circuncidado. Quando o Todo Poderoso estava prestes a destruir a vida do homem, sua esposa pegou rapidamente uma pedra e arrancou o pedaço “extra” do corpo do garoto (outch!), jogando a parte sangrenta aos pés de Moisés.

5 – A maldição da pobre figueira
Em Mateus 21:19 e Marcos 11:13-14, encontramos uma história estranha por dois motivos: vemos Jesus tendo um acesso de raiva (algo que não era comum no comportamento do Filho de Deus) e também um castigo no mínimo estranho.Na passagem, Jesus está caminhando e sente um pouco de fome. Ele então encontra uma figueira estéril procura frutos na árvore. Sem encontrar nada, ele então amaldiçoa o arbusto para que, até a sua morte, ninguém mais coma seus frutos.


6 – Deus prefere não mostrar seu rosto
Não, não estamos brincando. É só ler Êxodo 33:23 e você vai entender melhor a história. O versículo trata do encontro de Moisés com Deus: com o encontro marcado, o homem se posiciona em uma pedra ansioso para ver o ser divino, mas o Senhor simplesmente decide que nenhum ser na terra poderia ver seu rosto e sobreviver.

A solução? Mostrar seu traseiro para Moisés. Deus então deixa que Moisés veja suas mãos e a parte traseira de seu corpo celestial. A decepção deve ter sido grande na hora de relatar o ocorrido.

Para a equipe do Listverse, a moral da história é de que Deus às vezes trabalha de uma forma estranha para os padrões atuais.

7 – Animais falantes filosofando
Em Números 22:28-30, Balaão estava trabalhando em um dia comum, agindo com violência com seu jumento para que ele andasse. Cansado da situação, o animal começou a reclamar. Balaão então questionou a rebeldia do asno, que passou a filosofar algo sobre a natureza, seu relacionamento com humanos e sobre como aquilo feria seus sentimentos.

Balaão então fez as pazes com o animal e eles seguiram seu caminho como se nada tivesse acontecido. A moral da história talvez seja a de não procurar encrenca com animais falantes para evitar monólogos no meio do seu trabalho.

8 – Genética é para os fracos
A história relatada em Gênesis 30:37-39 é tão estranha que poderia ser explicada apenas como mais um milagre divino, mas não é assim que ela é relatada. Basicamente, Labão estava tomando todos os animais listrados e malhados de Jacó, que não ficou muito contente com a situação e bolou um plano nada convencional: ele pegou algumas varas brancas e colocou os objetos nos tanques de água dos animais. Isso fez com que os filhotes nascessem manchados.

De acordo com a Biologia, o plano dele deveria falhar miseravelmente, mas não é isso o que acontece nessa passagem. Segundo a Bíblia, os animais começam a copular e, misteriosamente, passam a dar à luz animais pintados. Obviamente, ninguém nunca repetiu o feito.

Fonte: Listverse – Tradução: Megacurioso
Copiado de http://www.revistaateista.com/blog/?p=7

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

A invenção da duração

Vivemos o tempo de um jeito, mas o pensamos de outro: aí está talvez a grande descoberta da filosofia de Bergson

                                                                                                                                                                                       Eduardo Socha
                                                                                                                                                                                       Ilustração Sattu


Você está parado no trânsito às 6 da tarde. Ouve a rouquidão opaca dos motores dos ônibus, o zumbido das motos, a impaciência ocasional das buzinas. O tempo parece amordaçado como se não quisesse fluir também. Então você resolve tirar do bolso seu tocador de mp3, ajeitar bem os fones de ouvido e escolher uma faixa do álbum predileto. Sua experiência do tempo vai assumindo outra feição, e os instantes passam a se amalgamar uns aos outros com uma qualidade bastante distinta do tempo anterior. A quantidade de tempo não muda: um segundo continua um segundo, tautologia assegurada pela isocronia do ponteiro (oudisplay) do relógio. Mas você sente agora que os instantes se dilatam e se contraem segundo uma contingência peculiar, promovida pelo encadeamento sonoro da música. Antes amordaçado, o tempo agora corre mais rápido ou anda mais devagar, dando-lhe a certeza de que sua percepção da passagem do tempo, enquanto ouve música, não coincide com aquela enquanto ouvia apenas ruídos do trânsito. Ao contrário do que sugere a cadência fixa do relógio, você realmente não sente os instantes de maneira quantitativa e exata. Ou seja, a passagem do tempo não é vivida pela sua consciência à semelhança de um relógio, no qual uma série quantitativa, marcada pela divisão em segundos, minutos e horas estabelece previamente a equivalência de todos os instantes. Na realidade, você vive uma sucessão ininterrupta de momentos qualitativos que não são divisíveis entre si, que se misturam uns aos outros e se organizam em sua memória com um aspecto único e intraduzível.

Dito de outro modo, vivemos o tempo de um jeito, mas geralmente o pensamos de outro: esse enunciado, banal apenas na aparência, deu esteio a paradoxos reincidentes na história da filosofia. De fato, estamos condicionados a pensar o tempo como uma dimensão quantitativa, cujos elementos internos são homogênos e definidos de antemão, o que nos permite balizar o tempo por meio de segundos, minutos, horas, dias, meses, anos e outras unidades de medida, conforme a conveniência da nossa necessidade particular. Assim, por força do hábito e, mais do que isso, por imposições práticas e fundamentais de sobrevivência, identificamos o tempo com uma linha sequencial de eventos. Consequentemente, construímos instrumentos e técnicas a fim de mensurá-lo, orientando nossas atividades partindo de segmentações apropriadas, seja no uso do relógio de césio, da clepsidra, do calendário, do azimute do sol ou do ciclo das marés.
Contudo, no interior de nossa experiência vivida, sentimos o fluxo do tempo como uma multiplicidade indivisível e heterogênea, que a cada instante se altera, se dilata, se contrai, reconfigurando instantes já passados, criando expectativas para instantes futuros. Por maior que seja nossa capacidade de antecipação, vivemos sob a torrente criadora da imprevisibilidade e da mudança, o que não nos impede de agir e pensar com regimes específicos de previsibilidade. Tal constatação, que sentimos na experiência mais trivial do nosso dia a dia, poderia ser finalmente resumida assim: os instantes, em instrumentos como o relógio, são sempre iguais entre si; quando vividos, são sempre diferentes.
Fácil na aparência
Reconhecemos desde já, portanto, duas modalidades para definir a noção de tempo. Por um lado, há o tempo considerado em uma dimensão quantitativa, tempo que pode ser medido, representado conceitualmente, submetido a cálculos e previsões: o tempo objetivo que, afinal, não depende de nossa consciência nem de nossa situação particular. Por outro, há o tempo considerado como fluxo qualitativo, íntimo, ligado aos estados internos da nossa consciência e, por isso, refratário ao cálculo e ao conceito: o tempo subjetivo que corresponde à efetiva passagem dos instantes nas nossas diferentes situações de vida. Não se trata de dualismo, mas de duas faces distintas para compreendermos com maior precisão aquilo que designamos singularmente pela palavra “tempo”.
Não seria exagerado dizer que toda a obra filosófica de Henri Bergson (1859-1941) apoia-se na “descoberta” dessa realidade. Por mais singela que ela aparente ser, a distinção entre duas modalidades de compreensão do tempo convida a uma reforma complexa e radical do pensamento. Daí a grande armadilha na filosofia de Bergson, com a qual eventualmente se deparam tanto o leitor iniciante quanto o especialista. Sua linguagem às vezes mostra-se fácil e acessível na superfície das frases, nas metáforas balanceadas pela argumentação formal e impecável, na textura cristalina da prosa em um registro meditativo. Nesse sentido, não é casual que tenha recebido o Nobel de Literatura, em 1927, sem nunca ter escrito uma obra de ficção. No alcance de seu conteúdo e na profundidade da reforma que ambiciona, porém, a complexidade do projeto rigoroso de Bergson o coloca entre os precursores do pensamento contemporâneo, assegurando-lhe lugar no panteão dos pensadores mais ambiciosos da história da filosofia.
Sem dúvida, uma ousadia quase messiânica permeia a originalidade do gesto teórico de Bergson. Pois, tomando a confrontação do tempo como ponto de partida para o ato de filosofar, o pensamento bergsoniano ambiciona não apenas a revisão de uma filosofia específica (o que perpetuaria o anátema de Kant segundo o qual a metafísica se reduz a um eterno “palco de disputas” entre doutrinas), mas ambiciona a revisão da filosofia em geral. Ora, para Bergson, “filosofar consiste em inverter a marcha habitual do trabalho do pensamento”. Mas, para que tal inversão ocorra, torna-se necessário reenquadrar metodicamente alguns dos problemas clássicos da metafísica – como os problemas da liberdade, do ser, da necessidade e contingência, da relação entre corpo e alma – segundo os parâmetros oriundos da “descoberta da duração”.
Ilusões da percepção
Usamos a palavra “duração”, provavelmente o termo mais importante do pensamento de Bergson, e menos saturado de sentido do que a palavra “tempo”. Seu significado não poderia ser mais direto: a duração refere-se ao tempo qualitativo que descrevemos acima, àquela natureza contínua do tempo. Nas palavras do filósofo, trata-se daquilo “que sempre se chamou de tempo, mas o tempo percebido como indivisível”.
Bergson aponta para a confusão histórica que se estabelece entre a duração (tempo qualitativo), que não pode ser traduzida por símbolos, representações ou conceitos, e a medida da duração (tempo quantitativo, espacializado). No torvelinho dessa confusão, observa que a metafísica ocidental colocou para si uma série de dificuldades intransponíveis, que invadem o raciocínio de maneira não enunciada e sub-reptícia. Já na Antiguidade, os eleatas proscreviam ao tempo, à mudança, ao movimento, à mobilidade o direito de cidadania ontológica. Seriam, afinal, ilusões da nossa percepção e degradação de essências, pois “o verdadeiro é o que não muda”. Mas, para Bergson, os famosos “paradoxos de Zenão” já apontavam para a equivocidade caracterizada pela ausência de distinção entre tempo quantitativo e tempo qualitativo, ou seja, pela identificação exclusiva do tempo com uma projeção espacializada de instantes – equivocidade que se perpetuaria, por exemplo, na cisão platônica entre mundo inteligível e mundo sensível, no cogito cartesiano, ou nas antinomias descritas na Crítica da Razão Pura, de Kant.
Para além de paradoxos e antinomias, o que Bergson procura detectar historicamente na filosofia e também na ciência de seu tempo é tanto o privilégio ontológico concedido às formas estáveis, à imobilidade, às representações conceituais, quanto a desconfiança em relação aos sentidos, à mobilidade, à fluidez instável do devir, às sensações que se transfiguram na consciência, como fontes autênticas do conhecimento. O tom grandiloquente da declaração mostra o tamanho do combate a ser empreendido: “Nenhuma questão foi mais desprezada pelos filósofos quanto a do tempo e, no entanto, todos concordam em declará-la fundamental (…). A chave dos maiores problemas filosóficos está aí”, escreve em Duração e Simultaneidade, livro que se propõe a debater, em solo científico, nada menos do que o conceito implícito de tempo, assimilado como quarta dimensão do espaço, na Teoria da Relatividade, de Einstein. Para o filósofo, o exame da Teoria da Relatividade justifica-se na medida em que toda formalização científica carrega consigo os pressupostos de uma metafísica particular que resiste em se apresentar como tal.
Pensar em duração
Mas, em se tratando exclusivamente de filosofia, “inverter a marcha habitual” do pensamento significa mostrar, antes de mais nada, que boa parte de suas questões clássicas seria dissolvida como “falsos problemas” mediante o reconhecimento da natureza qualitativa do tempo. Para tanto, o método bergsoniano exige um pensar em duração – a intuição, que pouco ou nada tem a ver com a acepção que comumente damos à palavra.  O método comportaria duas etapas indissociáveis: a “etapa crítica” e a “etapa propositiva” (como esclarece o livro monumental de Bento Prado Júnior Presença e Campo Transcendental – Consciência e Negatividade na Filosofia de Bergson).
Na etapa crítica, cuja forma mais acabada seria o “lance de olhos na história dos sistemas” que Bergson realiza no último capítulo de Evolução Criadora (sua obra mais conhecida), descreve-se a progressiva racionalização do tempo e o ocultamento de seu aspecto qualitativo no campo do conhecimento. Bergson considera que o próprio embate epistemológico entre idealismo e realismo está contaminado pelos vícios de um jogo de ideias abstratas que não aderem efetivamente à realidade, que ignoram a presença substancial da duração.
Evidentemente, o jogo não é gratuito, pois há uma propensão natural do pensamento à dimensão prática da existência humana, e sua “marcha habitual” equivale a recortar da realidade a face útil, abstrata, calculável, que favorece a ação. “Pensar”, diz Bergson, “consiste em ir dos conceitos às coisas, e não das coisas aos conceitos”, o que leva a ciência e o senso comum a considerar o tempo e o espaço como coisas do mesmo gênero. Por isso, aliás, dizemos que podemos “medir”, “localizar” e “situar” um momento qualquer na “linha” do tempo – às vezes, não nos damos conta de que esses termos se aplicam não à duração em si, mas a uma projeção espacializada da duração na qual seria possível até “voltar” no tempo.
Ocorre que a inclinação pragmática do pensamento, que sobrepõe um feixe de conceitos e ideias à realidade, contamina a especulação metafísica, forçada a se acomodar aos hábitos de uma linguagem que estabiliza e cristaliza o devir em palavras e conceitos. Na etapa crítica, é preciso, portanto, denunciar a intrusão de uma concepção espacializada de tempo lá onde menos se espera. Assim, cada livro e cada ensaio de Bergson empenham-se na “depuração” crítica das concepções espacializadas da duração que permeiam o campo do conhecimento filosófico.
A partir daí, o filósofo reposiciona nossa maneira de entender a liberdade, a memória, a percepção, a existência, a linguagem, a evolução vital. Na etapa propositiva do método, paralela à crítica, trata de afirmar que tempo é processo, é justamente aquilo que impede que tudo seja dado de uma só vez. Pensar em duração é pensar a própria transição vivida entre os instantes, é ver na elaboração do tempo a indeterminação das coisas. Ao conceder maior estatuto ontológico àquilo que muda e se diferencia, ou seja, dando mais “Ser” ao “Tempo” do que às “Formas”, Bergson encontra na duração não mais o receptáculo formal e vazio a ser “preenchido” pelo conteúdo da experiência (como acontece no relógio), mas redescobre a duração como a experiência imediata à consciência, forma e conteúdo inseparáveis, trazendo implicações para um conhecimento que não mais reconstrói a realidade com base em conceitos e formas, mas que adere às “sinuosidades” e às diferenças qualitativas da realidade.
A tarefa parece difícil. “Sim, o tempo é um enigma singular, difícil de resolver”, sentenciava Thomas Mann em A Montanha Mágica. No entanto, tal enigma se dissipa quando resolvemos inverter a marcha habitual do pensamento. Quando reencontramos, afinal, nem que seja por um tempo, a interioridade vivida dos ruídos e silêncios do próprio tempo.