
Modos de se ler a Bíblia: Horizontal e Vertical
A maioria das pessoas faz uma leitura da Bíblia, chamada leitura vertical. Essa pessoa lê o livro página por página, do início até o final; começando pelo Antigo Testamento, no livro do Gênesis até a sua última página, no Novo Testamento. Mas essa é uma leitura padrão para um livro qualquer, isto é, escrito por um autor, num intervalo de tempo não muito longo e feito de maneira uniforme, o que significa que todo ele foi escrito levando em conta a existência de partes anterores que devem fazer sentido com as posteriores. Porém, os historiadores e teólogos que seguem a abordagem crítica, como o teólogo Bart Ehrman, preferem a chamada leitura horizontal. Exemplo: temos o evangelho de João e Marcos, que narram a vida de Jesus. Ao invés de lermos um evangelho de cada vez (leitura vertical), podemos ler no evangelho de Marcos sobre a morte de Jesus e depois ler sobre o mesmo período, no evangelho de João. Isso é a leitura horizontal.
Também devemos considerar que todos os textos que formaram a Bíblia no séc. IV d.C, foram escritos separadamente, ou seja, o autor de um evangelho escrevia o seu texto sem ter consciência da existência de um autor diferente que escrevia uma outra narrativa em algum outro local. Dessa forma, esses textos não foram escritos com a intenção de um complementar o outro, mas cada um foi escrito com a intenção de ele sozinho suprir a necessidade de toda a comunidade cristã que o lia. No presente post, continuarei usando os evangelhos de João e Marcos para exemplificar melhor o que descrevi até então.
Evangelhos de Marcos e João – Iguais, Mas DiferentesHistoriadores acreditam que o evangelho de Marcos seja o mais antigo de todos, tendo sido escrito por volta do ano 70 d.C., enquanto o de João é tido como o mais recente. Ambos os evangelhos se parecem em muitos aspectos fundamentais. Ambos descrevem, por exemplo, a morte de Jesus. O problema é que os dois evangelhos apresentam diferenças inconciliáveis, ou seja, nem mesmo apelando para a idéia da complementaridade dos relatos, podemos safar a Bíblia destes erros. Antes de prosseguir falando sobre essas diferenças, sugiro que você tenha uma boa noção da Pessach, como é chamada a Páscoa judaica.
Entendendo a Páscoa Judaica
Essa era uma festa tradicional da religião judaica, cujo objetivo era a celebração da libertação dos judeus dos domínios egípcios. Ela era celebrada uma vez por ano, a partir do início da noite, então, começava a comilança. Cada alimento na ceia tinha um significado: o cordeiro, para festejar o sacrifício deles no Êxodo; ervas amargas para lembrar os judeus de sua amarga escravidão no Egito; pão ázimo (sem fermento), para que lembrem de sua fuga do Egito, sem que o pão tivesse tempo para crescer; e, finalmente, o vinho (Marcos 14:12).
Porém, antes que a ceia começasse, ou seja, durante a tarde, antes de o Sol se pôr, era o momento de sacrificar o cordeiro, e muitos judeus o faziam indo à Jerusalém, onde provavelmente também compravam o animal. Esses horários existiam porque para os judeus, um novo dia sempre começava com o pôr do Sol, assim, a Pessach, na verdade, ocorria no dia seguinte ao sacrifício do cordeiro. De forma mais simples:
12:00 até 18:00 – sacrifício do cordeiro (final do dia)
18:00 até 18:00 do dia seguinte – ceia (início do dia)
Pronto, agora você já está pronto(a) para entender o que diz em cada um dos dois evangelhos.
Marcos
Nesse evangelho, é relatado que na última semana de vida de seu mestre, os apóstolos perguntam onde ocorrerão os preparativos para o Pessach (Marcos 14:12). Depois disso, como que respondendo à pergunta, Jesus se dirige, junto com os outros, à Jerusalém, onde – como foi mencionado – ocorre compra e sacrifício dos cordeiros. Esse era um costume tradicional da maioria dos judeus, apesar de alguns grupos dissidentes – como os essênios – divergir de datas e métodos na comemoração.
Assim, no dia do evento, Jesus e seus discípulos elaboram uma ceia, onde são usados os mesmos alimentos de uma tradicional ceia judaica, porém, Jesus ressignifica toda a simbologia por trás daqueles alimento (Marcos 14:22-25):
-Pão ázimo: “Tomai, isto é o meu corpo”.
-Vinho: “Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado em favor de muitos”.
Depois disso, ocorre a célebre ida ao Getsêmani, onde Jesus espera pela chegada dos romanos junto com Judas. Enfim, pulando para mais adiante, no dia seguinte, às 9:00, ainda no Pessach, Jesus é crucificado.
João
Não existem muitas diferenças entre esse relato em Marcos e João, mas os que existem são significativos. A principal diferença que podemos destacar logo no início dessa história é que em João, os discípulos não perguntam onde serão os preparativos para a Páscoa. Eles até fazem um lanche, mas não fazem a ceia, porque em João, nesse momento não é a Páscoa ainda. Consequentemente, não há a parte em que Jesus atribui um novo significado aos alimentos da ceia; só o que ocorre é que Jesus lava os pés de seus discípulos (João 13:1-20). Logo depois parte para o Getsêmani e ocorre a traição. Já de cara com Pilatos, a sentença é proferida, mas João 19:14 diz que isso ocorre no momento da preparação para o Pessach.
Afinal, é Páscoa ou não? E por que isso é importante?
Até aqui você pode ter achado interessante a divergência que ocorre nos dois escritos mas pode estar se perguntando: “Ué, mas por que isso é importante para a doutrina cristã? Afinal, de um jeito ou de outro, Jesus foi crucificado!” Exato, mas os detalhes diferentes revelam que os autores tem diferentes concepções sobre o significado da crucificação.
No evangelho de João, logo no início, podemos ver que ênfase o autor quer dar para esse evento e para a posição de Jesus nele. Veja esses dois trechos, citados duas vezes: “Jesus é o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (João 1:29 e 1:35). Isso é tão importante que é dito duas vezes. Se lembrarmos do Pessach veremos que o cordeiro exerce papel também na ceia, afinal, é ele quem deve ser sacrificado na tarde antes do início da data festiva. Nesse caso, João coloca Jesus como o cordeiro de Deus que vai tirar o pecado do mundo. O sacrifício de cordeiros sempre tido como algo que agradava à Javé, e dessa vez não seria diferente. Só que dessa vez seria dado um outro tipo de cordeiro, um que ao invés de aplacar os pecados humanos temporariamente, daria o perdão eterno por todos. E isso é evidenciado no fato de que João fez questão de modificar os dados de Marcos e adaptá-los teologicamente. Já que Jesus seria crucificado antes do Pessach, de fato, ele seria como o cordeiro que é abatido antes do evento.
Vemos, assim, que a Bíblia não é um grande livro composto por textos que casam-se entre si, mas que possuem contradições também, e isso é explicado pelo fato de que cada um desses textos eram escritos para atender às necessidades de comunidades distintas. E tais palavras eram escritas levando em conta o significado daquilo, não a precisão histórica.
Fonte:
http://nerdworkingbr.blogspot.com/2011/12/as-contradicoes-inconciliaveis-do-novo.html
EHRMAN, Bart D., Um Mundo de Contradições, in: Quem Jesus Foi? Quem Jesus Não Foi?, 2010, Ediouro Publicações
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