segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Estilos cognitivos: entre a matemática e a crença em Deus?

Autor: Daniel Gontijo
Num primeiro momento, pode parecer estranho... mas Shenhav, Rand e Greene (2011) demonstraram que a forma como as pessoas lidam com a matemática pode revelar algo sobre sua crença em Deus. No entanto, as questões matemáticas que esses pesquisadores utilizaram em seus estudos continham "pegadinhas", ou problemas cujas respostas são intuitivamente atrativas, mas erradas. Em vez de medirem a habilidade dos participantes de somar, subtrair, dividir e multiplicar, eles estavam mais interessados em avaliar sua tendência a dar respostas intuitivasou refletidas àquelas questões. E, como resultado, constataram que a convicção com que os participantes disseram crer em Deus está correlacionada com essas tendências, ou com seus denominados "estilos cognitivos".



Por julgamentos intuitivos nós queremos dizer dos julgamentos feitos com pouco esforço e que são baseados em processos automáticos [ou instintivos], e por julgamentos refletidos nós queremos dizer dos julgamento em que o juiz [ou a pessoa] faz uma pausa para examinar criticamente os ditames de sua intuição, permitindo então a possibilidade de se chegar a uma conclusão menos- ou contraintuitiva (Shenhav, Rand e Greene, 2011).


Então, se pararmos por um momento para rever a questão, analisando cuidadosamente os dados e o enunciado, chegamos à contraintuitiva reposta de que a bola custa R$ 0,05. Notavelmente, as pessoas que deram respostas mais intuitivas no Cognitive Reflection Test (CRT) relataram ser mais crédulas na existência de Deus do que as que deram respostas mais refletidas -- e essa relação permaneceu significativa independentemente de sua idade, escolaridade e renda mensal.

Alguns críticos poderiam questionar se esses achados não podem ser explicados por outras variáveis que não pelos estilos cognitivos, como por exemplo pela personalidade e/ou inteligência dos participantes. Em um estudo complementar, os pesquisadores demonstraram que não: inteligência e personalidade não interferiram nos resultados. E, ainda no primeiro estudo, foi investigado se a influência religiosa que os participantes tiveram durante a infância estaria relacionada com a frequência de suas respostas intuitivas no CRT. Resultado: os dados não suportaram essa hipótese.

Para dar força à pista de que os estilos cognitivos explicam ou causam a crença em Deus, os pesquisadores delinearam um terceiro estudo, mas do tipo experimental. Basicamente, os participantes foram requisitados a escrever um parágrafo relatando uma situação na qual agiram intuitiva ou refletidamente, bem como se agir de uma ou de outra maneira produziu resultados positivos ou negativos. (Vale ressaltar que essas pessoas não puderam escolher qual situação e desfecho [positivo ou negativo] escrever. Em vez disso, elas foram randomicamente distribuídas dentre os quatro grupos possíveis.) Após serem submetidos a um desses quatro tipos de tarefa, cada participante respondeu à escala de religiosidade usada nos estudos anteriores. Como resultado, o relato da força ou convicção com que se acredita em Deus foi influenciado pelo tipo de contingência operada.(1) As pessoas que descreveram situações em que obtiveram bons resultados ao agir intuitivamente ou que obtiveram resultados ruins ao agir refletidamente alegaram crer mais em Deus. Alternativamente, os que descreveram bons desfechos ao agir refletidamente ou maus desfechos ao agir intuitivamente reportaram menoscredulidade. Com efeito, os pesquisadores concluíram que "a indução de mentalizações [mindsets] favorecendo a intuição (ou contrárias à reflexão) aumentaram significativamente o autorrelato da crença em Deus".

Lembrar da eficácia passada da intuição, ou da ineficácia da reflexão, aumenta a confiança com que se crê em Deus. 

Discutindo e teorizando
Os resultados dessa pesquisa sugerem que a crença em Deus e a maneira pela qual as pessoas encaram certas questões matemáticas são influenciadas, e quiçá causadas, por seu estilo cognitivo (mais intuitivo ou mais refletido). Interessantemente, a confiança na crença em Deus mostrou ser um fenômeno não imutável, mas experimentalmente modificável.(1)

Com base em outros estudos, Shenhav, Rand e Greene hipotetizam que a crença em Deus pode ser intuitiva por razões relacionadas a características mais gerais da cognição humana, as quais embasariam também as crenças no dualismo e no antropomorfismo. Esses processos intuitivos e automáticos poderiam, ao longo da vida, ser amenizados ou substituídos por processos refletidos e controlados. A despeito da coerência (teórica e empírica) dessas hipóteses, os autores não descreveram quais seriam as "características mais gerais da cognição humana" alegadas, bem como pouco se aventuraram a especular sobre que processosproduzem os estilos intuitivo e refletido. Mas eu vou me arriscar a dizer algo sobre este último ponto.

É bem provável que a cultura e as experiências individuais favoreçam ou dificultem o desenvolvimento, a manutenção e a prevalência de um ou outro daqueles estilos. Basicamente, diferentes culturas, famílias e pares podem fornecer consequências que reforçam ou enfraquecem os comportamentos intuitivo e refletido. Em seu famigerado O Mundo Assombrado pelos Demônios, Sagan (1996/2006) assevera que as escolas deveriam ensinar não só o que a ciência já descobriu, mas também como a ciência funciona. E ensinar o método científico corresponde, em parte, a ensinar o ceticismo e a estimular a pesquisa e a admiração pelos fenômenos naturais. E, como consta no prefácio de seu livro, questionar e admirar a natureza foi algo que Sagan aprendeu não na escola, mas principalmente em casa -- independentemente do fato de seus pais serem religiosos e pouco instruídos.

Ensinar o ceticismo não é simplesmente uma questão de "dar um empurrão" para que perguntas críticas e estimulantes apareçam; mais do que isso, é prover consequências que favoreçam seu desenvolvimento e manutenção. Pelo princípio da seleção por consequências,(2) deduzo que os ateus passaram consistentemente por situações nas quais indagar, desconfiar e testar foram comportamentos adaptativos, vantajosos ou "proveitosos", e que, pelo caminho alternativo, os mais crédulos se beneficiaram com frequência por agir intuitivamente, confiar nas autoridades e se apegar a respostas mais fáceis e agradáveis a certas questões. E é até possível, como aconteceu com Sagan -- e com alguns ateus com quem já conversei sobre o assunto --, que as contingências do primeiro tipo sejam naturalmente arranjadas num seio familiar cujos membros são religiosos.

Mas o que interpretar da correlação entre resolver pegadinhas de matemática, lembrar e escrever sobre certas situações e crer em Deus? Meu palpite é simples, senão óbvio: essas três ocasiões induziriam o aparecimento de respostas funcionalmente equivalentes,(3) então identificadas ou concebidas como os estilos refletido e intuitivo. Em outras palavras, parece haver uma tendência de sermos desconfiados ou intuitivos (em maior ou menor proporção) quando indagados sobre Deus e quando requeridos a solucionar certos problemas matemáticos. Contudo, dizer que agimos assim por causa de nossos estilos cognitivos não nos responde por que, naquelas ocasiões, fazemos julgamentos refletidos ou intuitivos. A explicação para o desenvolvimento, a manutenção e a prevalência de nossos julgamentos não está em nossos cérebros ou mentes, mas possivelmente nas variáveis ambientais a que fiz alusão acima.(4)

E o que dizer sobre o "efeito de priming",(1) então gerado pelo estudo experimental? Em primeiro lugar, as consequências de nossos comportamentos podem aumentar ou diminuir sua manutenção em tempo real (por exemplo, se admiramos uma pintura, então passamos mais tempo a observando), bem como podem aumentar ou diminuir a probabilidade de que eles sejam emitidos posteriormente (por exemplo, podemos voltar a contemplar aquela pintura em uma outra oportunidade). E o efeito dessas consequências pode se generalizar, isto é, pode afetar a emissão de respostas funcionalmente equivalentes às que tínhamos anteriormente emitido (por exemplo, podemos passar a contemplar obras de arte em geral, e não só a pintura que tínhamos inicialmente observado). Na pesquisa em discussão, observou-se que a resposta à pergunta "Com que força ou confiança você acredita em Deus?" foi influenciada pelos efeitos temporários produzidos pela tarefa que a precedeu (efeito de priming). Possivelmente, isso aconteceu em razão de os contextos arranjados (pergunta sobre acontecimentos passados e questão sobre Deus) evocarem comportamentos funcionalmente equivalentes, então concebidos como "estilo intuitivo" e "estilo refletido". Como um comportamento refletido foi previamente evocado e acompanhado por efeitos positivos (ou reforçadores), comportamentos posteriores desse mesmo tipo tiveram maior chance de aparecer (generalização temporária). Em conclusão, os dados parecem sustentar a hipótese de que o crer em Deus envolve os comportamentos genéricos de intuir e refletir.

No mais, deduzo que, se o refletir/desconfiar for um comportamento consistentemente estimulado/reforçado ao longo da vida, é possível que ele não apareça apenas em contextos interpessoais (em que as pessoas ocasionalmente querem nos enganar) ou escolares (em que podemos ser treinados para detectar pegadinhas em provas), mas também quando nos deparamos com certas ideias metafísicas. O cético é um indivíduo que, como sugerido por Sagan (1996/2006), está equipado com um "kit de detecção de mentiras", e este kit pode ser utilizado em enumeráveis circunstâncias cotidianas -- desde que as respostas que o compõem sejam frequentemente seguidas por consequências reforçadoras.

Notas
(1) O priming é um "efeito experimental que se refere à influência que um evento antecedente (prime) tem sobre o desempenho de um evento posterior (alvo)" (Wikipsicolinguística). Para ler um pouco sobre o assunto, sugiro um passeio peloblogue do André Rabelo.

(2) Tal como ocorre no nível da espécie, em que indivíduos levemente modificados (pela variação genética) podem ser selecionados por suas vantagens adaptativas, "estímulos consequentes à ocorrência de uma resposta explicam a mudança na probabilidade de ocorrência futura de respostas" desse tipo (Darwich e Tourinho, 2005). Em outras palavras, as consequências de certas repostas (que variam) as selecionam (no sentido de torná-las mais prováveis) ou as colocam em extinção (no sentido de torná-las menos prováveis). Se a consequência de uma resposta aumentar sua manutenção e/ou frequência, ela é chamada reforçadora; se uma consequência diminuir sua manutenção e/ou frequência, punitiva.

(3) Respostas funcionalmente equivalentes são aquelas que se assemelham quanto às consequências que produzem e, com efeito, pelas quais são mantidas. Por isso, podemos concebê-las como respostas de um mesmo tipo ou de uma mesma classe.

(4) Questões sobre o desenvolvimento são melhor respondidas por processos que envolvem a relação de um indivíduo com seus variados ambientes (interpessoais, educacionais etc.), podendo também a filogênese e a variabilidade genética ser considerados. Para críticas sobre a limitação com se explicar fenômenos comportamentais exclusivamente pelas variáveis internas (mentais ou encefálicas).


Referências
Darwich, R. A., & Tourinho, E. Z. (2005). Respostas emocionais à luz do modo causal de seleção por consequências. Revista Brasileira de Terapia Cognitiva e Comportamental, VII, 107-18.
Sagan, C. (1996/2006). O Mundo Assombrado pelos Demônios: a ciência vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras.
Shenhav, A., Rand, D. G., & Greene, J. D. (2011). Divine intuition: Cognitive style influences belief in God. Journal of Experimental Psychology: General. Advance online publication. doi:10.1037/a0025391

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