Que me perdoem os professores de matemática, mas resolver polinômios pelo algoritmo de Briot-Ruffini não se mostrou das coisas mais úteis na minha vida. É óbvio que para (quase) tudo há alguma aplicação prática e que conhecimento não costuma atrapalhar. O ponto é que poderíamos usar melhor nosso tempo aprendendo e discutindo questões um pouco mais pragmáticas, de cuja ignorância resultam prejuízos, aflições e conflitos desnecessários.
Por que não ensinar na escola noções básicas de direito e oferecer uma formação inicial em economia e planejamento financeiro? Introduzir e discutir um mínimo de filosofia, estimulando o estudo da lógica, do diálogo e da argumentação, com seus pecados e armadilhas? Descortinar os caminhos da arte, em suas infinitas formas e conteúdos?
Da mesma forma, por que não debater conceitos fundamentais de educação em Saúde – indo além dos cuidados pessoais, domésticos e noções de Suporte Básico de Vida? Devíamos aprender na escola como é organizado o Sistema de Saúde e, mais importante, como utilizá-lo.
Censuras veementes aos serviços médicos, sejam do subsistema público ou suplementar, já são mais que lugar-comum. Muitas críticas são pertinentes – temos muito a melhorar, em ambos os modelos. No entanto, alguns impropérios esbravejados por acompanhantes raivosos e discursos repetidos exaustivamente em mesas de bar têm suas raízes na total ignorância dos objetivos de cada nível de atenção e de suas diferentes unidades.
Tentando aclarar um pouco o assunto, ofereço este pequeno “Manual do Usuário” dos serviços de saúde. Dou certa ênfase ao glorioso SUS, por ser o maior alvo de pedradas (muitas vezes injustas), mas a maior parte dos conceitos também se aplica à rede suplementar.
SUS
O Sistema Único de Saúde, criado para substituir o falecido INAMPS (que só contemplava os trabalhadores registrados), veio ao mundo em 1990, trazendo a atenção à saúde à nova realidade da Constituição de 1988. Em consonância com a nossa Lei Maior, a ousada proposta do SUS é uma das mais avançadas e completas do mundo.
Propôs-se, através da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080 de 19/09/1990), que nosso sistema de saúde se pautasse por três princípios éticos ou doutrinários (universalidade, integralidade e equidade) e três diretrizes organizacionais (descentralização, regionalização e hierarquização).
Muita manga poderíamos coser com o pano dessas definições, mas, em resumo, os princípios éticos propõem que a assistência à saúde:
- é um direito de todos,
- que todas as demandas em saúde devem ser supridas (o SUS é um “plano de saúde que cobre tudo”) e
- que o acesso aos recursos deve ser homogêneo para todos os estratos sociais e regiões do Brasil.
Belo. Pretensioso. Fantasioso para alguns, mas não é essa a discussão que proponho por enquanto.
As diretrizes organizacionais estabeleceram que as decisões administrativas fossem tomadas em “esferas” (nacional, estadual e municipal) com atribuições específicas e que as unidades da rede seriam classificadas em níveis de complexidade e teriam áreas de abrangência definidas, trabalhando em um fluxo de referência e contra-referência para cobrir todas as demandas de todos os usuários. Parece meio complicado e é exatamente essa parte que a maioria dos usuários não entende e que vamos destrinchar em breve.
Outra característica fundamental do SUS, regulada pela Lei 8.142 de 28/12/1990, é o controle social. As Conferências de Saúde e os Conselhos de Saúde são mecanismos criados para que a gestão do SUS conte com a participação direta dos seus usuários. Nos Conselhos, presentes em todos os níveis, metade das vagas pertence aos usuários, um quarto ao governo e um quarto aos trabalhadores. (O que me faz querer perguntar: você, que critica o SUS, já cogitou botar o pau na mesa no lugar certo pra isso?)
Importante lembrar, ainda, que o sistema suplementar (“particular”), que pode operar sob vários modelos de gestão, organiza-se, no que diz respeito à alocação de recursos, de forma não muito diferente. E que os recursos do sistema suplementar podem e são muito utilizados pelo SUS, sob a forma de serviços contratados, com ou sem lucro. A via reversa – a utilização de recursos do SUS pelas empresas da saúde suplementar – é polêmica suficiente para um artigo separado.
Feitas as apresentações, vamos às vias de fato.
Níveis de atenção (ou “Por que não devemos procurar o Hospital das Clínicas da FMUSP para tratar pressão alta”)
O sistema de saúde é dividido em níveis de atenção. Cada estrato tem suas prerrogativas e responsabilidades e atende a demandas com determinada complexidade, custo e necessidade de uso de tecnologia.
À Atenção Primária, cujo carro-chefe é o Programa de Saúde da Família, cabe resolver a grande maioria dos agravos à saúde, além do “recrutamento” dos níveis subseqüentes – é da Atenção Primária a tarefa de definir quando um paciente deve ser referenciado aos níveis de mais alta complexidade, se houver necessidade do uso desses recursos. A “casa” da Atenção Primária é a UBS – Unidade Básica de Saúde, e esse nível de atenção deve estar presente em todos os municípios.
A Atenção Secundária opera quando há necessidade de consultas com especialistas, exames complementares e internações hospitalares por agravos que não requerem grande uso de tecnologia.
Por sua vez, a Atenção Terciária é responsável por um número muito menor de condições, mas que demandam muitos recursos tecnológicos e atuação de sub-especialidades. Casos um pouco mais raros e com necessidade de cuidados mais específicos.
Além dessa classificação, existe a figura dos centros “quaternários”, como o HCFMUSP (Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina de São Paulo), normalmente associados a núcleos acadêmicos, com disponibilidade de recursos muito além dos usuais, intensa produção científica, super-especialistas e atendimentos de casos muito raros e graves.
O fluxo dos pacientes entre as unidades acontece pelos mecanismos de Referência (para níveis “acima”) e Contra-Referência (para níveis “abaixo”). Utilizar recursos de determinado nível para o atendimento de pacientes com doenças de outro é um dos mais belos tiros no pé que poderíamos dar. Gera gastos excessivos, diminui a eficiência e a eficácia dos serviços, produz disparidades entre demanda e capacidade de atenção nas diferentes unidades e destrói a autonomia da Atenção Primária, a quem caberia a regulação desse sistema.
Os centros quaternários, por exemplo, são recursos para casos raros, complexos, desafiadores. Essa é, inclusive, uma de suas funções primordiais.
Como normalmente estão associados a núcleos acadêmicos – muitos nasceram como hospitais-escola de faculdades de medicina – pode sim haver espaços específicos nestes serviços para a atenção a usuários com demandas mais simples, com objetivos de ensino ou pesquisa, dois dos pilares dessas instituições.
Na maioria das vezes, no entanto, ao procurarmos o Hospital das Clínicas por uma doença que não pudesse figurar em um episódio duplo do House, talvez estejamos encurtando a vida do camarada com uma doença mais grave ou rara, que só será atendido depois de vários meses.
Regionalização (ou “Por que não devemos pegar um avião na Bahia para tratar insuficiência renal no Rio de Janeiro”)
Como a maior parte dos casos pode ser resolvida na Atenção Primária, não precisamos construir um hospital terciário em cada município, mesmo que em todos os lugares haja pacientes que, em determinado momento, apresentam demandas terciárias. Isso seria estúpido mesmo que sobrasse dinheiro (e sabemos que não sobra).
Todos os municípios devem contar com recursos de atenção primária (a Organização Mundial da Saúde recomenda e existência de uma UBS para cada 20 mil habitantes). Hospitais secundários devem existir em cidades de médio porte, sendo referência para uma determinada região, que engloba os municípios vizinhos. Hospitais terciários e quaternários localizam-se em grandes centros, drenando casos selecionados da sua macro-região, que devem seguir o fluxo coerente desde a atenção primária até o topo da referência.
Muitas vezes esse fluxo é “burlado” por profissionais ou pacientes desinformados ou inescrupulosos. Muitos médicos (eu incluso) perderam a conta dos pacientes que vieram por conta própria ou “encaminhados” dos mais distantes rincões do país para tratar doenças de nível secundário ou terciário no Hospital das Clínicas, alegando que em sua cidade não há recursos para tal.
É óbvio que em Machadinho d’Oeste – RO não há (nem deveria haver) recursos para hemodiálise prontamente disponíveis, por exemplo. Já em Porto Velho, capital do estado, certamente há suporte para tanto. Cinquenta e sete equipamentos, precisamente, segundo dados do DATASUS. Não há justificativa, portanto, para um paciente ser “encaminhado” para um serviço distante por um agravo tratável no serviço de referência de sua região. Os complexos hospitalares quaternários, como o HC, recebem casos de todo o continente, quando há indicação para isso. E assim funcionam todos os serviços de referência.
Quando fraudamos nosso CEP para fazer nos grandes centros o que poderia ser feito em casa, de novo, talvez estejamos encurtando a vida do camarada com uma doença mais grave ou rara, que só será atendido depois de vários meses.
A função de cada unidade ou ambiente (ou “Por que não devemos procurar o pronto-socorro por causa daquela tosse que começou há dois meses”)
Dentro dos diferentes níveis de atenção, cada ambiente dos serviços de saúde tem uma função bem específica.
Quando vamos a um consultório com hora marcada, fazemos a consulta e vamos embora, qualquer que seja a proposta terapêutica ou diagnóstica, estamos falando de medicina ambulatorial. É por essa estrutura que devemos atender a maioria das demandas, especialmente a Promoção à Saúde. É nesse ambiente que investigamos queixas crônicas (de longa duração), que fazemosrastreamentos e seguimento de qualquer doença.
Por vezes, é necessária uma internação hospitalar. Ocupamos um leito, dormimos no hospital. Isso acontece quando é necessário um tratamento mais invasivo (com medicações endovenosas ou procedimentos cirúrgicos, por exemplo), quando precisamos monitorar mais de perto o tratamento e a evolução ou quando isso facilita a logística de uma determinada investigação, com exames em sequência ou envolvendo maior risco. Isso pode acontecer no ambiente de enfermaria ou de terapia intensiva.
Quando falamos em enfermaria, nos referimos a um setor de internação sem monitoração contínua dos parâmetros vitais e sem a presença constante do médico. Isso independe da quantidade de leitos por quarto, a despeito dos aspectos mercantis muitas vezes associados a essa definição (um apartamento particular em um hospital de luxo continua sendo, do ponto de vista médico, “enfermaria”). Nas unidades de terapia intensiva, que atendem a doentes gravemente enfermos ou potencialmente instáveis, há a presença constante do médico, monitoração contínua e maior proporção de outros profissionais de saúde e outros recursos.
O pronto-socorro, este antro de estresse, conflitos, pacientes pitizando, acompanhantes surtados e ameaças de processo, mereceria um texto próprio, tamanha a confusão gerada pela sua procura indevida e por demandas impróprias baseadas em ignorância e egoísmo.
Adiantando o que todos os médicos gostariam que o mundo soubesse: o pronto-socorro serve para atender casos potencialmente graves, de doenças agudas (de instalação muito recente), com risco de morte ou algum grau de incapacidade.
Ao procurarmos o PS para “ver como está o diabetes” (“à noite, porque a fila é menor”), “fazer check-up”, investigar aquela dor nas costas que nos incomoda há um mês e meio (e hoje, às três da manhã, decidimos que “não aguentamos mais”), pedir atestado para matar o trabalho ou “aproveitar que viemos trazer nosso filho e já ‘dar uma olhada’ nessa manchinha que apareceu na pele”, certamente estamos reduzindo as chances de vida do camarada que está infartando em silêncio ao nosso lado e vai ter que esperar (preciosos) minutos a mais por nossa causa.
Por isso, no Pronto Socorro, o atendimento deve ser o mais rápido e objetivo possível, com história e exame clínico focados na queixa principal, assim como a solicitação de exames complementares – que devem ter indicação clara de acordo com as hipóteses diagnósticas. (Não, não dá pra “aproveitar e já ver como anda o colesterol”).
Se o médico investigar cada pequena queixa e der espaço a essas demandas impróprias, alongando a consulta e aumentando o tempo de espera, ele não está sendo atencioso e prestativo, mas sim protagonizando má-prática médica. Está fazendo errado (além de validar a desinformação e o uso indevido dos recursos).
E, sim, é consenso entre médicos e outros profissionais de saúde que os pacientes mais irritadiços e revoltados com o tempo de espera e com a brevidade do atendimento são os que têm maior probabilidade de não estarem doentes, e/ou terem procurado o PS indevidamente, por afecções sem o menor sinal de gravidade ou por interesses escusos. Com alta sensibilidade e especificidade.
LUCAS PEDRUCCI
Gaúcho expatriado, Lucas Pedrucci é pianista aposentado, jogador de rugby em fim de carreira, ex-oficial da FAB, paraquedista das categorias de base e meditante wannabe. Seu principal hobby é a Medicina, que estudou na USP e tem praticado no Hospital das Clínicas.
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